"Agora é raro o dia sem uma petição. É rara a semana sem uma
manifestação. Causas urgentes e necessárias, causas justas, às vezes questões
de vida ou de morte, questões de direitos, de liberdade, de dignidade, de
futuro. As petições não custam nada, é só assinar no computador.
As manifestações são mais complicadas, é preciso ir,
organizar o dia à volta da manifestação, saber onde é, por onde passa, quem
convoca, que transportes apanhar, vencer a resistência a participar - não por
comodismo, mas porque quase nunca estamos de acordo com tudo o que representa
uma manifestação.
É preciso negociar connosco próprios, ceder, defender o
essencial e esquecer o acessório, pensar nos fins sem nunca esquecer os meios,
medir vantagens e benefícios, participar na contestação mas não banalizar a
contestação, mobilizar as pessoas mas não cansar as pessoas.
Agora todos os dias são dias de luta, mas esta luta
atomizada em manifestações e petições, em debates e reuniões de trabalho, em
artigos para os jornais e fotografias e posts e comentários nas redes sociais
não tem um sentido definido. Muitos dos que contestam a austeridade quando ela lhes chega ao bolso concordam que gastámos acima das nossas possibilidades e que é preciso pagar e, se continuarmos a conversa, ainda defendem que o Estado corte nos gastos sociais dos outros.
Muitos dos discursos de rua que começam a criticar este
Governo e o anterior e os anteriores estendem rapidamente o seu ódio a todos os
políticos, a todos os partidos e à própria política e acabam a criticar a
democracia que entregou o poder aos arrivistas corruptos. Muitos dos que
começam a criticar a falta de democracia na União Europeia acabam a demonizar
os estrangeiros que só nos querem roubar o pouco que temos e a defender o
isolacionismo.
A maior vitória do
neoliberalismo é esta, os ataques que os pobres desferem uns contra os outros.
O maior ataque ao Estado Social é este, o que se ouve nas conversas dos
cidadãos comuns, que criticam os que beneficiam de apoios do Estado porque
obrigam o Governo a aumentar os impostos. Que criticam as famílias que recebem
o RSI e levam as crianças ao café para comer bolos, como se comer bolos fosse
um direito dos nossos filhos mas não dos filhos dos outros. Que criticam os
grevistas dos transportes, porque prejudicam quem quer ir trabalhar e não pode.
Que criticam a classe média que vai aos hospitais públicos e gasta recursos do
Estado mas tem dinheiro para ir aos hospitais privados. Que até são capazes de
concordar com o líder parlamentar do PSD, Luís Montenegro, que explica que
acabar com os descontos no passe social é justo porque evita que Belmiro de
Azevedo ande de autocarro a beneficiar dos nossos impostos. Uma das coisas mais
tristes desta crise é ser bombardeado com as mensagens-correntes de mail onde
se denunciam os pretensos privilégios e os grandes salários de alguns. Nalguns
casos, raros, a indignação é legítima. Há gastos excessivos, sumptuários, onde
devia haver contenção e frugalidade no uso de dinheiros públicos. Mas em muitos
casos a indignação é não só disparatada mas cirurgicamente orientada para
desviar as atenções das benesses de que goza o capital. Enquanto umas centenas
de ingénuos se indignam com os salários de certas estrelas da televisão (“Envia
esta mensagem a vinte dos teus amigos!”), não dizem uma palavra contra os juros
cobrados a Portugal pela “ajuda externa”, contra o escândalo do BPN e das PPP,
contra os benefícios escandalosos concedidos aos bancos, as isenções fiscais
das grandes empresas, a fuga legal aos impostos dos grupos económicos com sede
na Holanda, o desvio de dinheiros para paraísos fiscais, os impostos
inexistentes sobre os rendimentos do capital. Tudo isso é escamoteado pelo
cachet de José Carlos Malato ou de Catarina Furtado.
A maior vitória do
neoliberalismo é esta, é este discurso, uma vitória conseguida a golpes de
propaganda repetida sem descanso, com a cumplicidade (frequentemente
involuntária e acéfala) dos media.
É por isso que
continuamos a ouvir Vítor Gaspar nos telejornais, repetindo as suas fantasias
que nenhum raciocínio sustenta. Um dia, ele ou outra marioneta do Governo virá
dizer-nos que a Terra é plana e os media, dando provas de equilíbrio e isenção,
dirão, “Essa não é porém a posição do geógrafo Fulano de Tal, que sustenta, por
seu lado, que...”
A responsabilidade
dos media na alimentação deste discurso é central. É por isso que vemos, em
movimentos cívicos como o Manifesto contra a Privatização da RTP ou a
Iniciativa de Auditoria Cidadã à Dívida Pública ou a Rede Economia com Futuro,
a necessidade de produzir e disponibilizar informação que os media deveriam
produzir, filtrar, validar e difundir mas que não produzem, não filtram, não
validam e não difundem. Os movimentos sociais estão a tentar fazer o trabalho
que devia ser dos media mas eles ainda não perceberam, preocupados como estão
em colocar o microfone bem próximo dos lábios de Vítor Gaspar."