“Nestes últimos três anos caiu-nos uma depressão em cima da
cabeça, e o que fizemos? Procurámos culpados. O “viver acima das nossas
possibilidades” e “os malefícios do endividamento”, são duas cantigas populares
dos últimos anos. E, no entanto, antes de a crise ter rebentado na América e de
se ter propagado à Europa, o nível de endividamento de alguns dos países do sul
da Europa, como Portugal e Espanha, tinha vindo a reduzir-se. Os gráficos estão
lá e mostram que sim (como mostram que o gigante alemão também está fortemente
endividado). Mas porque é que as pessoas não querem acreditar nisto? Nem sequer
apreender o facto de terem sido “praticamente todos os principais governos”
que, “nos terríveis meses que se seguiram à queda do banco de investimento
Lehman Brothers, concordaram em que o súbito colapso das despesas do sector
privado teria de ser contrabalançado e viraram-se então para uma política
orçamental e monetária expansionista num esforço para limitar os danos”? A
Comissão Europeia e a Alemanha estavam “lá”. E, de repente, tudo mudou.
Uma das maiores
dificuldades de lidar com esta crise é, em primeiro lugar, o facto natural de
tanto o cidadão comum como Jesus Cristo não perceberem nada de finanças, a
menos quando lhe vão ao seu próprio bolso (ou perde o emprego). A outra é o
poder da narrativa do “vivemos acima das nossas possibilidades”, aquilo a que
Krugman chama a “narrativa distorcida” europeia, “um relato falso sobre as
causas da crise que impede verdadeiras soluções e conduz de facto a medidas políticas
que só pioram a situação”. Krugman ataca “uma narrativa absolutamente errada”,
consciente de que “as pessoas que apregoam esta doutrina estão tão relutantes
como a direita americana em ouvir a evidência do contrário”.
Três quartos do
livro-manifesto “Acabem com esta crise já”, é dedicado aos Estados Unidos,
pátria de Krugman. Mas tendo em conta o nosso “interesse nacional”,
centremo-nos no que diz sobre a Europa.
Krugman refuta a
explicação popular e maioritária sobre a situação actual na Europa – países sob
tutela de troika e pedidos de resgate à média de dois por ano. “Eis, então, a
Grande Ilusão da Europa: é a crença de que a crise da Europa foi essencialmente
causada pela irresponsabilidade orçamental. Diz essa história que os países
europeus incorreram em excessivos défices orçamentais e se endividaram
demasiado – e o mais importante é impor regras que evitem que isto volte a
acontecer”.
Krugman aceita que a
Grécia (e Portugal, “embora não à mesma escala) incorreu em “irresponsabilidade
orçamental”, mas recusa a “helenização” do problema europeu. “A Irlanda tinha
um excedente orçamental e uma dívida pública reduzida na véspera do deflagrar
da crise (...) A Espanha também tinha um excedente orçamental e uma dívida
reduzida. A Itália tinha um alto nível de endividamento herdado das décadas de
1970 e 1980, quando a política era realmente irresponsável, mas estava a
conseguir fazer baixar de forma progressiva o rácio do endividamento em relação
ao PIB”. Ora um graficozinho do FMI demonstra que, enquanto grupo, “as nações
europeias que se encontram actualmente a braços com problemas orçamentais
conseguiram melhorar de forma progressiva a sua posição de endividamento até ao
deflagrar da crise”. E foi só com a chegada da crise americana à Europa que a
dívida pública disparou. Explicar isto aos “austeritários” é uma tarefa insana.
Diz Krugman: “Muitos europeus em posições-chave – sobretudo políticos e
dirigentes na Alemanha, mas também as lideranças do Banco Central Europeu e
líderes de opinião espalhados pelo mundo das finanças e da banca – estão
profundamente comprometidos com a Grande Ilusão e nada consegue abalá-los por
mais provas que haja em contrário. Em consequência disso, o problema de
responder à crise é muitas vezes formulado em termos morais: as nações estão
com problemas porque pecaram e devem redimir-se por via do sofrimento”. Ora é
esta exactamente a história que nos conta o governo e que é, segundo Paul
Krugman, “um caminho muito mau para se abordar os problemas que a Europa
enfrenta”.
Ao contrário do que
muita gente possa pensar, Krugman não é um perigoso socialista. E, céus, até
defende a austeridade (alguma, mas não esta). Vejam como ele explica a crise
espanhola, que considera a crise emblemática da zona euro: “Durante os
primeiros oito anos após a criação da zona euro a Espanha teve gigantescos
influxos de dinheiro, que alimentaram uma enorme bolha imobiliária e conduziram
a um grande aumento de salários e dos preços relativamente aos das economias do
núcleo europeu [Alemanha, França e Benelux]. O problema essencial espanhol, do
qual derivam todos os outros, é a necessidade de voltar a alinhar custos e
preços. Como é que isso pode ser feito?”. O Nobel explica: “Poderia ser feito
por via da inflação nas economias do núcleo europeu. Imagine-se que o BCE
seguia uma política de dinheiro fácil enquanto o governo alemão se empenhava no
estímulo orçamental; isto iria implicar pleno emprego na Alemanha mesmo que a
alta taxa de desemprego persistisse em Espanha. Os salários espanhóis não iriam
subir muito, se é que chegavam a subir, ao passo que os salários alemães iriam
subir muito; os custos espanhóis iriam assim manter-se nivelados, ao passo que
os custos alemães subiriam. E para a Espanha seria um ajustamento relativamente
fácil de fazer: não seria fácil, seria relativamente fácil”.
Ora, esta maneira
“relativamente fácil” de resolver a crise europeia tem estado condenada (vamos
ver o que se segue ao novo programa de compra de dívida do BCE, criticado pelo
presidente do Bundesbank) pela irredutibilidade alemã relativamente à inflação,
“graças às memórias da grande inflação ocorrida no início da década de 1920”.
Krugman lembra bem que estranhamente “estão muito mais esquecidas as memórias
relativas às políticas deflacionárias do início da década de 1930, que foram na
verdade aquilo que abriu caminho para a ascensão daquele ditador que todos
sabemos quem é”.
O que trama as nações
fracas do euro (como Espanha e Portugal) é, não tendo meios de desvalorizar a
moeda – como fez a Islândia no rescaldo da crise com sucesso – estão sujeitas
ao “pânico auto--realizável”. O facto de não poderem “imprimir dinheiro” torna
esses países vulneráveis “à possibilidade de uma crise auto-realizável, na qual
os receios dos investidores quanto a um incumprimento em resultado de escassez
de dinheiro os levariam a evitar adquirir obrigações desse país, desencadeando
assim a própria escassez de dinheiro que tanto receiam”. É este pânico que
explica os juros loucos pagos por Portugal, Espanha e Itália, enquanto a Alemanha
lucra a bom lucrar com a crise do euro – para fugir ao “pânico” os investidores
emprestam dinheiro à Alemanha sem pedir juros e até dando bónus aos alemães por
lhes deixarem ter o dinheirinho guardado em Frankfurt.
Se Krugman defende
que “os países com défices orçamentais e problemas de endividamento terão de
praticar uma considerável austeridade orçamental”, defende que para sair da
crise seria necessário que “a curto prazo, os países com excedentes orçamentais
precisam de ser uma fonte de forte procura pelas exportações dos países com
défices orçamentais”.
Nada disto está a
acontecer. “A troika tem fornecido pouquíssimo dinheiro e demasiado
tardiamente” e, “em resultado desses empréstimos de emergência, tem-se exigido
aos países deficitários que imponham programas imediatos e draconianos de
cortes nos gastos e subidas de impostos, programas que os afundam em recessões
ainda mais profundas e que são insuficientes, mesmo em termos puramente
orçamentais, à medida que as economias encolhem e causam uma baixa de receitas
fiscais”. Conhece esta história, não conhece?”
Sem comentários:
Enviar um comentário