quarta-feira, 14 de maio de 2014

uma realidade suja










 Estamos perante uma farsa limpa, e uma saída que, nestes moldes, simplesmente não existe. A farsa, eficazmente montada por responsáveis políticos preocupados com as eleições de 25 de Maio para o Parlamento Europeu e reproduzida sem qualquer exigência crítica pela generalidade dos meios de comunicação, está a tornar-se intoxicação. E isso fará dela uma tragédia.

O Memorando de Entendimento assinado em 2011 com a Troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu, Fundo Monetário Internacional), tanto na versão inicial como nas ultrapassagens pela direita depois introduzidas, serviu para disfarçar de «ajuda financeira externa a um país em dificuldades» um empréstimo bancário muito condicionado a políticas orçamentais de reconfiguração do Estado (amputando as suas dimensões sociais e os serviços públicos) e do trabalho (cortando empregos, direitos e salários, precarizando e forçando tantos desempregados à emigração).

Este programa tipicamente neoliberal, que nem deixou de fora as privatizações de empresas e sectores lucrativos, permitiu ao sistema financeiro internacional transformar uma crise bancária e financeira numa crise de dívidas dos Estados. Mesmo países como Portugal, que antes da crise iniciada em 2008 não tinham grandes problemas de dívida pública, caíram na armadilha. O que contou foi a particular debilidade de uma dívida externa há décadas associada a um padrão de especialização produtiva muito frágil face aos embates que a economia tem sofrido – desde logo com a integração numa arquitectura europeia e monetária disfuncional, em que os défices que martirizam os povos do Sul fazem os excedentes dos credores que enriquecem a Norte.

O programa de ajustamento neoliberal do Memorando cujo período de cumprimento agora termina não foi uma intervenção limitada no tempo, num país agora entregue à sua sorte. Os constrangimentos inscritos nos tratados europeus, em particular no Tratado Orçamental, e as intocadas regras institucionais e monetárias, dão a qualquer governo argumentos para manter e agravar durante anos as políticas de austeridade, de ataque ao Estado social e ao trabalho. Se a isto juntarmos o garrote da dívida pública, formatada para ser insustentável e garantir a asfixia permanente, temos todas as condições para que Portugal, crescentemente inserido nos mecanismos financeiros da Europa e da globalização, ambas neoliberais, tenha sido atirado, com ou sem visitas regulares da Troika, para uma trajectória duradoura de endividamento e empobrecimento.



A celebração da «saída limpa» não é, portanto, nem «saída» nem «limpa» A única «limpeza» é a da farsa, que aproveita de forma obscena as fragilidades de uma população sequiosa de boas notícias e alguma esperança. Há poucas mentiras tão detestáveis quanto as que são ditas nestas condições de sofrimento colectivo. Pelas ausências de limites na prossecução dos seus fins, mas também por serem um concentrado de anti-democracia. Governar pela impostura é expulsar do conflito político-social as regras do jogo democrático (e a confiança nelas depositada para resolver problemas colectivos); é alimentar soluções que prescindem da democracia. As farsas não se transformam em tragédias de um dia para o outro. Durante algum tempo convivem traços de uma e de outra no tecido social. Os cidadãos das classes populares e médias que se sentem gozados quando ouvem falar de «saídas limpas» e as comparam com a sua realidade, cada vez mais encardida pelas políticas que lhes são impostas, têm razões para não terem esperança no «pós-Troika». Esta espécie de «ir para fora cá dentro» já não promete uma perspectiva de férias, como na publicidade de outrora, mas as mil e uma formas de a Troika anunciar que sai, não saindo.

Uma saída a sério exige, seja qual for o governo em funções, que ele esteja disposto a armar-se de um consenso com o seu povo, com os povos austerizados, para afrontar as metas monetaristas do Tratado Orçamental e impor aos credores financeiros uma reestruturação profunda da dívida. Fora deste cenário, e das alianças virtuosas e fortes que ele tem condições para criar, a realidade de quem vive do seu trabalho será trabalhar mais e receber menos; a de quem cai na precariedade será a constante perda de direitos; a de quem está desempregado será a emigração ou a eternização dessa condição (com subsídios reduzidos ou sem qualquer protecção social, como já acontece a 445 mil dos 812 mil desempregados); a de quem se reforma será a de pensões que deterioram muito o seu nível de vida. Ao lado da pobreza e da desigualdade, a riqueza continuará a acumular-se entre os beneficiários da austeridade.

Se não for agora que a esquerda, que todas as esquerdas, se empenham em deter este empreendimento criminoso e substituí-lo por políticas que promovam a justiça social, quando será? Quando as regras de saída das crises já nada quiserem com o jogo democrático? Por muito que se tente manipular a realidade, a tragédia, quando se instala, é sempre suja.

sexta-feira 9 de Maio de 2014

Tragédia limpa por Sandra Monteiro

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