quarta-feira, 13 de março de 2013

Tantos doutores portugueses - por um Português


Aquele trolha, aqui chamado Carlos, encontrava-se contente com os resultados obtidos naquele dia de trabalho: o muro ficaria rapidamente pronto, sem defeitos e nem o sol ao bater-lhe adulterava a precisão da talocha, da colher, da cortiça, da escova e do pincel daquelas experimentadas mãos.
O muro que tinham rebocado antes tinha de altura máxima um metro e vinte, mas este tinha mais de dois metros. O pedreiro que o construiu dizia isso e também que não tinha licença. Enfim, além do mais o pedreiro já recebeu o preço da sua empreitada e, neste momento, isso era o mais importante de tudo.
Quanto ao resto, é evidente que Câmaras Municipais, em Portugal, há mais trezentas, Juntas de Freguesia acima de quatro mil (que formam a base da estrutura estatal), os seus membros, desde Presidente de Junta de Freguesia, secretários, tesoureiros e vogais, a Presidente, sete vereadores e conselheiros camarários sem fazer nada - ganham dinheiro como príncipes –, têm mais direitos que outros cidadãos.
O muro vedava a quinta da Glória e esta delegara – por ausência do marido – no seu cunhado, o Sr. Presidente da Junta, a tarefa de reconstruí-lo, como fez o pedreiro; rebocá-lo, tarefa do trolha desta história, e pintá-lo de amarelo, que era moda, o mais depressa possível. Agora, licenças e cumprir as ordinárias leis, para quê?!. 
Era sexta-feira, o sol ainda esquentava apesar das cinco horas da tarde, amanhã só trabalhava meio-dia, depois era domingo: dia de descanso! Assim, o seu pensamento dava voltas aos quarentas euros diários, que agora o mandatário da sua patroa, Sr. Presidente da Junta de Freguesia, ia pagar amanhã à hora do almoço, finda a semana de trabalho.
Aquela senhora, cunhada do Presidente da Junta, continuava a olhar a roupa estendida nas pedras, nos pequenos arbustos, na erva, enfim, um coradouro. De repente, muito rapidamente, começou a virar a roupa ao contrário. Ao virar as cuecas do marido da irmã já coradas de sabão e sol de um lado, húmidas e tesas, botão da portinhola olhando para ela, olhou o trolha de relance. Aquele sacana nunca olha para cá, pensou! Era mentira! Enquanto se trabalha, trabalha. O trolha, ali, devia ser apenas trolha.
Havia amigos dele, trolhas como ele, que diziam que eram estucadores, mas ele rebocava paredes e tarefas afins; agora, até um muro: era trolha!
Não fazia como a maioria dos “doutores” em Portugal. Toda a população tem o hábito de copiar os seus dirigentes e o exemplo vem de cima, onde advogado é Doutor, o mecânico é Engenheiro, o desenhador é Arquitecto, o pedreiro é Empresário, etc. A esmagadora maioria da gente que dirige os destinos de Portugal é inábil e sem escrúpulos, desde membros de autarquias à superestrutura do Estado. Nesta roda viciosa o nosso desenvolvimento caminha, caminha e caminha para pior.
Várias vezes, o Carlos tinha olhado para ela. Isso é verdade, mas há verdades reclamadas e testemunhadas como há verdades esquecidas e abafadas. Depois há verdades que, pela contradição e incoerência humana passam, a mentiras.
Pois a verdade de o trolha ter olhado várias vezes foi ignorada pela ânsia da senhora que arriscou ainda mais. Curvar-se-ia novamente, mais perto dele, de modo dizer o que queria. Parece que valeu a pena, porque o trolha trabalhava mais devagar, olhava para um lado e para o outro, confuso, e evitava olhar para perto dela. Pelo relógio da igreja eram cinco e meia. Mais meia hora para começar a lavar a ferramenta e arrumar a tábua que servia de prancha naquele trabalho.
Mas aquelas coxas altas, aqueles segundos eróticos, com preto no meio, das calcinhas ‒ ou mesmo pêlos? ‒ outro “princípio da incerteza” de Manoel de Oliveira,  sombreavam-lhe a teia dos pensamentos e ilusões imediatas do trolha. Pensou em Catherine Deneuve, actriz em Paris; Catherine Deneuve, na noite no Parque Eduardo VII, de dia ministro em Lisboa, Canal 18, Sexy Hot, Playboy e... Glória, “meu antigo biscoito”.
- Carlos, Carlos, Carlos... ‒ Finalmente Carlos ouviu a chamar por ele, baixinho.
Vira-se em frente e na janela estava a senhora sorridente, que lhe diz:
- Anda cá, anda, vem depressa!
Ele andou alguns metros junto ao muro já rebocado, entrou no portão e estava a dois metros da senhora.
- Anda cá dentro beber uma cerveja! Não está cá ninguém...
- Mas... ainda não são seis horas, estou sujo e... a tua irmã?!...
A senhora não perdeu tempo, percebeu o erro e atalhou:  
- Olha, a minha irmã e o seu marido, meu cunhado Adolfo, estão em Lisboa até terça-feira e ficamos cá sozinhas: eu e o bebé mais lindo do mundo! Passa aqui às 10 horas para tomar café, está bem? É verdade, esta semana quem te paga sou eu. O meu cunhado enfiou o teu ordenado numa carta.
Ele percebeu..., ia dizer o quê?
- Está bem, está bem!
- Pronto, anda pelo carreiro de dentro da quinta às 10 horas em ponto e bate devagar na porta da sala; não acordes a menina!
- Está bem, estou aqui às 10 horas.
Rapidamente foi reposto no papel de trolha, mexer na argamassa colocando água e enchendo pelo meio a última gamela do dia. Segundo o relógio da Igreja eram seis e vinte e cinco quando entrou na carrinha para, como de costume, ir ao café beber um copo e conversar com os amigos. Amigos de infância, amigos da juventude, amigos de farras e não amigos de ocasião.
Olha o Carlos!
Boa tarde Carlos!
Oh Carlos, diz-me cá uma coisa. Como se chama aquela mulher de boca grande, do telejornal da TVI?
Pois, tinha que falar novamente dos caixotes que mudaram o hábito de pensar. Há um pensamento colectivo, uma anestesia ditada pelos grandes grupos económicos ou (poder central), que pensam, na essência, por nós; futebol, telenovelas, comentadores, por exemplo… Em vez da conjunção de vários factores e problemas colectivos, de fazer nascer ideias, agora surgem as ideias da TV para serem mastigadas e, com mais ou menos tempo, engolidas. Em vez de sermos seres humanos, cidadãos de pensamento livre, somos seres humanos, telespectadores com pensamento conduzido, pensou o Carlos.
- Então, Carlos, como se chama?
Como “cá se vai andando com a cabeça entre as orelhas”, além disso eram amigos, Carlos respondeu:
- Desculpa lá, Neca! Olha, o nome dela é o feminino do teu: tu és Manuel e ela é Manuela, Manuela Moura Guedes.
- Mas ela não era deputada?
- Espera aí, Neca!
- Oh Joana, olá! Dás-me um paralelo e um rissol de carne?...
E vós pessoal: pedi que eu pago!
Todos ouviram.
“A conversa é como as cerejas, nunca mais acabam”. Mesmo assim, foi embora a tempo de tomar banho e comer em casa com a mulher e seu filho já púbere.
Bateu na porta da sala da casa da Glória, gerida pelo Sr. Presidente da Junta, às dez horas e quatro minutos, como viu no seu relógio. A porta foi rapidamente aberta, entrou e a porta rapidamente fechou. Ainda com a luz apagada, (“não acordes, dorme minha menina!”), em décimos de segundo tinha os lábios da Glória colados nos seus.
No “Portugal profundo”, ao arrepio da classe dirigente, santíssima monogamia: duas línguas, duas bocas, dois corpos reencontram e misturam-se…
Há meia dúzia de Câmaras Municipais que não tem o referido funcionamento, a quem peço desculpa. A Câmara Municipal da vila de  Arouca e Câmara Municipal de Montelegre me desculparão!...

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